quarta-feira, setembro 01, 2010

GOLPE DE AR (FABRÍCIO CORSALETTI)




EM BUSCA DE AR LIVRE

Cristiane Brasileiro*

Luiz Fernando Medeiros de Carvalho*


Golpe de ar, novo livro de ficção de Fabrício Corsaletti, Editora 34, confirma a singularidade desse escritor. Experimentando vários gêneros, da poesia aos contos e agora ao romance, sua voz também aparece em livros para crianças e letras de música. Pois também essa atividade profusa, assim como a personalidade nela encarnada, se encontram no novo livro, onde aparecem concentrados procedimentos anteriores - mas agora maturados e reunidos num só corpo.

Assim, no romance estão presentes o clima geral de turma jovem reunida que emanava dos contos de King Kong e cervejas, assim como o passo alternadamente distenso e abrupto, a prática de descobrir a intensidade em meio a detalhes aparentemente anódinos, o registro de tempos em que quase nada acontece e no entanto de repente a carne se vê marcada a ferro e fogo. Também reaparece o despojamento refinado e comovido de Estudos para o seu corpo, e mesmo algo do olho sempre aberto e ágil de Zôo.

Vejamos: a proposta dos primeiros capítulos do livro é retomar a lembrança de alguns meses de imersão em Buenos Aires para registrar “aquelas horas em que você cede lugar a algo que está fora de você e é a própria viagem”. Nesse contexto é que o narrador – como o autor, também um jovem poeta nascido em 1978 – funciona como anfitrião e guia para outros brasileiros e, ainda mais especialmente, para uma turma de moças/musas/ninfas com idade em torno de 19 anos, “meninas inacreditáveis” criadas à base de “muito Danoninho e muita Folha de São Paulo”.

Quase à maneira de um guia turístico da cidade, somos apresentados ao longo da narrativa a um sem número de bares, restaurantes, praças e até livrarias. Ritualmente embebedando-se a cada noite e voltando brevemente à tona no dia seguinte, o narrador hospeda as meninas na sua casa vendo-se então, por um lado, “muito próximo da felicidade”, e por outro ainda “pouco à vontade com aqueles de quem mais gostaria de ser íntimo”. Cansado de sustentar qualquer identidade, ele segue resoluto e aleatório, buscando qualquer coisa que o ajudasse a não esquecer que “estava vivo mas um dia estaria morto”, e que o impedisse de se acostumar “com o que quer que fosse”. Ecôa, nesse sentido, um tanto do andarilho bêbado e iluminado de Rimbaud, assim como do projeto fundamental e impossível formulado por Oswald de Andrade na alvorada da nossa poesia modernista: “Ver com olhos livres”. Não por acaso o narrador encontra, nessa busca, um poema.

Mas não só. Toda essa leveza sólida de “rocha que alguém tivesse desenhado numa janela” ganha outra dimensão no rapaz que fica “bancando o descompromissado”. Desinteressado de uma aproximação mais visível com rodas literárias na cidade onde pousou e fincou o pé, é no entanto a própria poesia o astro em torno do qual o narrador se move através de trajetórias sinuosas. Nesse sentido, a narrativa de Corsaletti é, também, um romance de formação, no qual o narrador aprende o que lhe será crucial ao mesmo tempo em que abre as portas pra que o leitor faça o mesmo, através dele.

E essa aprendizagem se dá menos até pelo encontro com um poema específico que, no entanto, concentra e redireciona a ação do livro, produzindo a energia necessária para a entrega amorosa. Acontece muito mais, de fato, pela experimentação concreta do que constitui o cerne da linguagem poética: uma prática de se colocar atentamente “à espera de tudo”, entre o mais orgânico e o mais impalpável, oscilando entre a graça da dissolução de si e o imperativo da escolha de cada gesto, entre a aceitação da deriva e a capacidade de assumir um ângulo concreto a partir do qual “um amontoado de ecos fora do apartamento” por algum instante imenso se reorganiza - e o que é longamente desejado enfim acontece, sempre imprevisivelmente.


* Professora de Literatura na Unesa e Designer Instrucional do Cederj.

* Professor Titular de Literatura Brasileira da UFF e do Mestrado em Letras da Unincor.

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